Em tempos idos, para comemorar o Dia de Portugal, a Marinha de Guerra Portuguesa enviava navios para junto das Comunidades Portuguesas (França, Alemanha, Canadá, etc.). Ao navio onde eu estava embarcado em 1979, calhou como destino a França. A navegar em pleno Golfo da Biscaia, onde o mar está quase sempre agitado, avistámos quase na linha do horizonte um objecto que parecia a asa de uma pequena avioneta. O comandante decidiu inspeccioná-lo, rebocá-lo e içá-lo no navio para posterior entrega às autoridades. O Mestre mandou arriar o bote com motor fora-de-borda para ir ao local "laçar o bicho" com um cabo de 300 metros de comprimento que seria depois passado ao cabrestante (tipo de guincho) de ré para ser rebocado até ao navio.
A mim, coube-me a tarefa de guarnecer o bote com o Pereira e o Abrantes. Dos três, o Abrantes era o mais experiente. Eu era o mais inexperiente e ainda por cima estava a fazer o “baptismo” em águas internacionais e por isso, vulnerável a todo o tipo de praxes. O mar estava bravo e o bote, connosco a bordo, subia as cristas e caía nas cavas das vagas em poucos segundos, tal era a agitação!
Feitos ao mar, o Pereira ia desenrolando o cabo cuja extremidade tinha ficado a bordo para assim que a “avioneta” fosse "laçada" se iniciasse a manobra de recolha. Eu, nos intervalos das orações a S. Gregório (vomitar) ia pensando no modo de dar o nó no “aparelho”: se aquilo era um avião, onde raio é que eu ia passar o cabo? Certamente “aquilo” não teria nenhuma argola?! O Abrantes (o mais experiente) ao motor, ia manobrando o bote aparentando a calma de um marinheiro habituado a estas “festas”. Só que a meio do caminho, connosco a subirmos ao céu e a descermos ao inferno em segundos, por força das vagas, o Abrantes começou a gritar pela mãe. “Maldita vida! Se me apanho em terra vou-me embora desta porcaria!” – gritava ele.
Para mim, aquilo era conversa fiada: ele estava combinado com o Pereira, que não disse uma palavra durante toda a operação, para me “praxar”. De qualquer modo, com o colete de salvação envergado eu não teria problemas e ainda por cima a cerca de duzentos metros do navio, mesmo que não conseguisse nadar, tinha o cabo para agarrar e me aproximar de bordo – pensava eu.
À medida que nos aproximávamos da “avioneta” íamos tendo a sensação que, aquilo não era o que parecia. E não era efectivamente. Era uma gaivota de pedais, semi-afundada. O que ao longe parecia o extremo da asa, era a parte posterior de um dos flutuadores. Entre encontrões, subidas ao céu, descidas ao inferno e orações a S. Gregório, lá consegui com a ajuda do Pereira aplicar a “volta de fiel” à estrutura metálica que unia os dois flutuadores. Comunicámos com o navio informando-o do sucesso da operação pedindo autorização para regressar a bordo. O Abrantes continuava com as suas lamúrias. O Pereira, branco como a cal "rezava a S. Gregório" comigo. Eu, continuava desconfiado da intenção da praxe: não me aconteceu nada até agora, mas vai acontecer.
Mas não aconteceu. Vivi com essa dúvida até que um dia passados anos, encontrei o Abrantes em Aveiro, já “fora de perigo”. Fomos beber um copo para festejar o reencontro e voltámos à conversa sobre “a avioneta do Golfo da Biscaia”. Dizia ele: “Está calado, ó pá!… nunca tinha apanhado um cagaço tão grande!... Foi isso que me fez perder o gosto por aquela vida e vir embora”.
Afinal, o Abrantes não estava a brincar. Que tenha muita saúde!